terça-feira, 10 de novembro de 2015

"Tabacaria" e uma breve reflexão

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."*

"(...) tenho em mim todos os sonhos do mundo." Quantos sonhos são? Não importa, pois o mais importante é não deixar de sonhar, não deixar de lutar, dia após dia, para transformá-los em realidade. E sabemos que não é fácil... não é nada fácil...

Tantas vezes tentamos descrever aquilo que é indescritível... É um turbilhão de coisas que vão se atropelando, se sobressaindo, se escondendo, se esquivando... e, num dado momento, parece que queremos ter o controle de tudo aquilo que simplesmente foge ao nosso controle... que sequer tem controle. É aí que está o problema: num ato heroico, tentar, de forma absolutamente descontrolada, controlar aquilo que é incontrolável... O que podemos fazer???

"Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado."

As boas maneiras dizem que temos que ser fortes e colocar as coisas do coração de lado, permitindo apenas que a razão dite as regras... ou siga-as... mas como é difícil! Sim, às vezes (muitas vezes) complicamos as coisas, mas muitas vezes as coisas simples acabam tendo uma complexidade fora do normal... e daí para a dificuldade é um passo, um pequenino passo.

Quantas vezes mais nos perderemos no tempo e no espaço? Quantas outras tantas nos intimidaremos diante da dúvida? Quando poderemos nos apresentar ao mundo sem medos, sem receios, sem ligar para o que os outros pensam e dizem, sem olhar para os olhares inquisidores da nossa sociedade ou do meio em que vivemos? Quais são as nossas chances nesse mundo caótico? Quando poderemos assumir nossos erros e acertos sem que hajam tantos dedos apontados na nossa cara? Quando poderemos assumir a nossa mortalidade diante de tantos seres que se dizem imortais? Quando poderemos amar, de peito aberto, sem nos machucamos uma vez mais? Quando estaremos certos disso, daquilo, daquilo outro???

"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim..."*

É... parece que temos mais (mas muito, muito, muito mais) perguntas do que respostas... Nesse sentido, apenas a vida, apenas viver a vida e deixá-la fluir podem ser saídas honrosas na tentativa de respondermos a tantas indagações.

O poeta nunca esteve tão lúcido em seus versos... em tempos de crise, de solidão, de tristezas, de desentendimentos, de decepções, de desavenças... nunca esses versos foram tão atuais e retratam tão bem nossos conflitos interiores e exteriores também.

Às vezes parece que as tempestades nunca mais cessarão... dá até uma sensação de que o mal chegou para ficar... mas basta um exercício rápido: olhar para aquilo que estamos fazendo, para nós mesmos, ao nosso redor, para percebemos que há coisas boas, coisas muito boas... e que somos bons... e não é apenas na intenção. Precisamos treinar a nossa mente para fazer esse exercício diuturnamente ao invés de nos condicionarmos com tudo aquilo que não está certo, com tudo aquilo que é ruim... Que tal olharmos para as coisas boas, ainda que pequenas? É claro que não resolve todos os problemas do mundo, mas diminui muito aquela sensação de carregar o mundo das costas, de achar que nada que daquilo que fazemos está certo, de pensar que poderíamos ter feito outras escolhas e ter feito tudo de forma diferente. Certamente, parte dessas sensações são fatos (em sua maioria, consumados... e nos perseguirão por um bom tempo, senão pela vida toda), mas precisamos abrir mão de ficar carregando esse peso e, em seu lugar, permitirmos que as levezas da vida nos acompanhe.

Sim, falar é muito, muito fácil... mas é a prática que nos tornará melhores (creio que menos piores), a cada dia, a cada instante de vida, conosco e com aqueles que convivemos, em particular, com aqueles que amamos.

*versos do poema  Tabacaria, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.




Declamação de "Tabacaria", por Antonio Abujamra.