Passei um tempo razoável em trânsito e no trânsito, sozinha... na verdade, com meus pensamentos e sentimentos. Ao mesmo tempo que pensava na agenda, nas coisas que estava fazendo e precisava fazer, foi inevitável não voltar no tempo: há dois anos perdia o meu pai.
Muitas vezes, quando estou no trânsito, me lembro dele, me lembro das nossas conversa ao longo das longas idas e vindas para o InCor.
Conversávamos sobre muitas coisas, mas tinha um assunto que era recorrente: tempo de vida x qualidade de vida. Desde que meu pai infartou pela primeira vez, em 1990, sua vida não foi mais a mesma. Sua saúde, com o tempo, foi ficando frágil. Ainda que ele se mantivesse durão, essa debilidade era nítida. Foram vários procedimentos ao longo de seus últimos 26 anos, incluindo cirurgia e um "reboot"...
Em uma das consultas, o parecer derradeiro: "Infelizmente não há mais nada que podemos fazer". É bem complicado ouvir essa constatação e lidar com ela... mas foi assim que meu pai encarou os últimos anos, com a sentença muito bem definida e anunciada.
Nas nossas conversas, a indagação sobre tomar tantos remédios por dia (vinte e poucos comprimidos) e não conseguir fazer coisas cotidianas e simples. A Medicina o mantinha vivo, mas sem qualidade de vida... e, ainda que o parecer dos médicos, em algum momento, tenha sido muito claro, não estávamos preparados para tal. (Aliás, o que tenho constatado é que nunca estamos preparados para as perdas, ainda que saibamos que um dia elas ocorrerão .)
Sabendo que meu pai tinha apenas 25% de seu coração funcionando e muitas complicações e limitações se apresentando, dia após dia, por conta disso, sempre ficava pensando no que poderia fazer para minimizar tudo isso... uma casa sem escadas, o máximo de conforto, pequenos prazeres cotidianos... muitas vezes me colocava no lugar dele na tentativa de entender um pouco mais de sua realidade... e esse era, para mim, um dos exercícios mais duros...
Apesar de lamentar sua partida, de certa forma prematura, consigo perceber que se ele tivesse sobrevivido a mais um infarto, não sei em quais condições estaria. Certamente preso numa cama... talvez em estado vegetativo... sei lá... não dá pra saber... mas qualquer uma dessas opções o deixaria absolutamente chateado, principalmente porque ele era um cara ativo. Quando penso em tudo isso, concluo que sua partida ocorreu no tempo certo, sem que houvesse mais sofrimento. Há quem me julgue por pensar assim, mas a vida e o tempo têm me mostrado isso, tem me permitido respeitar as limitações do corpo, da mente e do próprio tempo.
Recentemente conheci um trabanho muito interessante e que, para mim, faz total sentido: tratamento paliativo.
Vi um pouco desse tratamento ser aplicado ao meu avô que, em seus noventa anos de idade, sofreu com o peso do tempo... e sei que todos se esforçaram muito para dar-lhe um tratamento digno, respeitando seu tempo.
Hoje foi um dia de reflexões sobre essas questões... às vezes queremos que um ente querido, que um amigo, permaneça aqui conosco, não importa em quais condições... e isso, a meu ver, é muito egoísmo de nossa parte. Precisamos aceitar nossa finitude e fazer com o fim da jornada seja digno, respeitoso, sem dor.
O trabalho da Dra. Ana Claudia Quintana Arantes, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - ao qual me referi anteriormente, trata disso: de como respeitar o fim, quando esse é o único meio disponível pela Medicina.
Vale a pena saber um pouco mais sobre o assunto. Creio que sua fala traz um pouco mais de esclarecimento ao assunto... afinal, "a morte é um dia que vale a pena viver ".
TEDxFMUSP - Dra. Ana Claudia Quintana Arantes
Gostaria que meu pai estivesse aqui hoje... ele estaria pirando, junto comigo, na reviravolta que a minha vida deu e está dando. Me contento com as boas lembranças e com seu desejo de que a Medicina evolua não apenas para deixar seus pacientes vivos, seja lá por quanto tempo for, mas que tenham qualidade de vida. Que esses segundos a mais valham a pena e possam ser, de fato, vividos. Caso contrário, será difícil entender o quanto essa sobrevida vale a pena (e esse é, sem dúvida, um dos meus questionamentos que me perturbam).
Pra finalizar, devo admitir que não há um dia em que não sinto saudades do meu pai. Sempre que saio pra trabalhar, me lembro dele... a minha última memória dele é vê-lo, pelo retrovisor, fechando o portão. No início foi dificílimo chegar em casa e não tê-lo mais me esperando. As boas lembranças são aquelas que ficam e aquecem o coração. É difícil não contar com sua presença física, com seu beijo e seu abraço... mas também não seria fácil tê-lo aqui, fisicamente, sem qualquer condição de dar um beijo, um abraço ou papear um pouco.
O meu amor por ele será eterno, assim como a minha gratidão e as boas lembranças, incluindo a longa conversa que tivemos - nossa última longa conversa após assistir "Interstellar", uma semana antes de sua partida numa tarde de domingo... conversamos sobre Física, sobre Teoria da Relatividade e, novamente, sobre as questões relacionadas ao tempo... o tempo de vida/sobrevida e a qualidade de vida.
Cena do filme "Interstellar " (2015).